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É Desporto

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13 de Março, 2021

Nawal El Moutawakel. A inspiração feminina do Islão

Rui Pedro Silva

Nawal El Moutawakel

Como se traduz a grandeza de um feito desportivo? Em mais de 100 anos de Jogos Olímpicos, só para falar do evento mais global, não conseguimos resistir à imortalização de momentos como os triunfos de Jesse Owens na Alemanha de Hitler, o 10 de Nadia Comaneci ou os recordes de Michael Phelps e Usain Bolt.

Existem várias componentes. A dimensão do feito desportivo, o enquadramento histórico ou a superação de obstáculos durante uma vida difícil dão sempre bons filmes porque… são boas narrativas. Mas Nawal El Moutawakel não surge claramente em nenhuma destas métricas.

Sim, Nawal ganhou uma medalha de ouro nos 400 metros barreiras nos Jogos de Los Angeles, em 1984. Sim, Nawal tornou-se a primeira muçulmana, e primeira marroquina, a vencer um título olímpico. E sim, Nawal até tem uma história de vida interessante. Mas, apesar de tudo isso, estarei a dar um tiro muito ao lado quando escrevo que poucos de vocês, que estão a ler estas linhas, já tinham ouvido falar de Nawal El Moutawakel? Ou que a associam claramente a uma história olímpica importante?

Eu, ignorante, me confesso. Até há uma semana nunca tinha ouvido falar de Nawal El Moutawakel. Ao mesmo tempo é difícil ficar imune à dimensão do seu feito. E não apenas por ter sido a primeira muçulmana mas sim por tudo o que esse feito desencadeou. Quão importante será alguém para que baste o seu nome para enviar uma carta.

Este é o primeiro ponto: escrever «Nawal El Moutawakel, Marrocos» passou a ser suficiente para contactar a atleta. E depois, claro, o que surgiu do telefonema do Rei Hassan II, minutos depois do triunfo. «Ligou-me assim que cruzei a linha de meta. Levaram-me para uma sala especial e disseram-me que o rei estava ao telefone. Disse-me: “Estou tão orgulhoso por ti. O país inteiro está louco. Esta vitória deixou-nos todos muito felizes e orgulhosos”».

Os elogios não se ficaram por aqui. «Para celebrar, declarou que todas as raparigas nascidas naquele dia teriam de se chamar Nawal», continuou, admitindo que ficou sem palavras. «Não conseguia acreditar que ele estava acordado e a ver a prova. Era de madrugada em Marrocos.»

Caminho traumático até ao ouro

Nawal El Moutawakel

Nawal El Moutawakel não era uma figura de renome do atletismo mundial e estava longe de ser a favorita naquele 8 de agosto de 1984. Tinha dois campeonatos árabes e dois campeonatos africanos desde o início da década, não apenas nos 400 metros barreiras, mas no confronto contra as melhores do mundo não tinha brilhado.

A edição inaugural dos Mundiais de Atletismo, em Helsínquia, em 1983, mostrou que estava longe da elite. Não conseguiu passar das eliminatórias nos 100 metros barreiras e nos 400 metros barreiras não foi além das meias-finais, com o 12.º melhor tempo.

Os norte-americanos viram algo nela que gostaram. Nawal tinha 21 anos, vinha de uma família que promovia a igualdade, com educação semelhante entre irmãos rapazes e raparigas, e o convite para aceitar uma bolsa desportiva da Universidade de Iowa State foi inesperado.

«O meu pai praticava judo, a minha mãe voleibol e eu e os meus quatro irmãos e irmãs praticávamos atletismo», contou, concretizando a naturalidade com que a prática desportiva era vista no seio da família. Mas a surpresa do convite fez o pai hesitar, acabando por se decidir, seduzido pela possibilidade de a filha ter uma boa educação. Nawal fez as malas, seguiu para os Estados Unidos e o pai… morreu uma semana depois.

«Durante três meses ninguém me disse que ele tinha morrido. Sempre que pedia para falar com ele, diziam-me que estava ocupado ou que não queria falar comigo para garantir que eu me concentrava nos meus treinos. Quando descobri que tinha morrido, fiquei muito zangada», admitiu.

A presença nos Jogos Olímpicos em Los Angeles surgiu menos de um ano após a morte do pai. Motivada e com um treino mais adequado, passou dos 57.10 segundos de Helsínquia para os 54.61 em Los Angeles. Foi beneficiada, é certo, pela ausência das primeiras cinco classificadas dos Mundiais (as duas soviéticas e as três alemãs orientais falharam a competição devido ao boicote de leste), mas isso passou a ser apenas uma nota de rodapé.

Não era favorita mas terminou com mais de meio segundo de vantagem sobre a norte-americana Judi Brown e sobre a romena Cristieana Cojocaru. O hino marroquino soou pela primeira vez – três dias depois, Saïd Aouita conquistou o primeiro lugar nos 5000 metros – e a população entrou em delírio. Pelo inédito da situação. Por ser marroquina. Por ser uma mulher.

«As mulheres começaram a escrever-me a agradecer pelo que tinha feito por elas através do desporto. Mulheres com e sem véu diziam-me que as tinha libertado», recordou.

Nawal El Moutawakel não virou as costas à responsabilidade e tornou-se uma figura importante em Marrocos. Em 1993 foi responsável pela criação de uma corrida de cinco quilómetros para mulheres que recebe anualmente cerca de 30 mil mulheres. «Quis que pudessem sentir o poder do desporto juntas. É como uma pequena revolução. Acredito fortemente que o desporto pode influenciar uma vida para sempre. A minha vida pode ser dividida num antes e num desporto da minha medalha de ouro. Aqueles 54.61 segundos mudaram totalmente a minha vida», afirmou.

O Rei Hassan II também voltou a cruzar-se na sua vida. Em 1997 foi convidada para o cargo de Secretária de Estado do Ministro dos Assuntos Sociais, com a pasta da Juventude e do Desporto mas só durou até março de 1998. Quase uma década depois, assumiu durante dois anos a posição de Ministra da Juventude e do Desporto. Pelo meio, também assumiu posições na Federação Internacional do Atletismo e no Comité Olímpico Internacional.

Nawal El Moutawakel precisou «apenas» de correr 400 metros para ser uma pioneira de corpo e alma. Pode não ser reconhecida como Jesse Owens, Nadia Comaneci, Michael Phelps ou Usain Bolt, mas não deixou de afetar – melhorando – muitas vidas. Uma de cada vez.

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