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É Desporto

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07 de Fevereiro, 2017

Steve Mokone. Um herói com facetas obscuras

Rui Pedro Silva

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O primeiro sul-africano negro a jogar na Europa quebrou barreiras e foi comparado a estrelas como Pelé, Stanley Matthews, Di Stéfano e Eusébio. A história familiar é duvidosa: a filha recusa-se a vê-lo como um herói e os dez anos que cumpriu na prisão dos EUA por ter atirado ácido contra a ex-mulher e uma advogada estão rodeados de mistério.  

 

Uma bandeira contra o apartheid

 

Steve Mokone teve de lutar contra as probabilidades para conseguir vingar no mundo do futebol. Nascido a 23 de março de 1932, em pleno regime de apartheid na África do Sul, viu no desporto uma forma de se afirmar.

 

Com apenas 16 anos, foi chamado pela primeira vez para a seleção negra da África do Sul. A capacidade técnica, potenciada por ter começado desde cedo a dar toques com uma bola de ténis, deu nas vistas e tentaram recrutá-lo de Inglaterra. Mas o pai deu exatamente a mesma resposta aos emissários do Newcastle e do Wolverhampton: não. Steve não ia a lado nenhum enquanto não completasse os estudos.

 

A escola não foi a única dificuldade para sair da África do Sul. Só em 1955, já com 23 anos, Mokone rumou a Inglaterra, para representar o Coventry City, depois de ter esperado três anos pelo passaporte. À saída, um opositor do apartheid sussurrou-lhe: «Lembra-te que cada golo que marcares na Europa será mais um passo contra o regime». Afinal, seria o primeiro sul-africano negro a disputar um campeonato europeu.

 

A adaptação a Inglaterra foi muito complicada. Habituado às regras segregacionistas, sentiu-se estranho ao ser colocado em casa de uma família branca. Ali, partilhava tudo, desde canecas à casa-de-banho. «Foi uma experiência muito solitária. Havia brancos a servirem-me no restaurante, havia brancos a fazerem-me a cama. Foi um choque cultural completo», disse.

 

Globetrotter europeu

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O sul-africano era um malabarista. Tecnicamente era mais evoluído do que os ingleses, mas tinha muitas dificuldades para se adaptar ao estilo direto do futebol britânico. Gostava de ter a bola nos pés, não de chutar para a frente e correr. No Coventry, a sua identidade foi criticada. Sugeriram-lhe que arranjasse um lugar no circo.

 

A falta de oportunidades fez com que saísse. Ainda fez captações no Real Madrid mas rumou ao Heracles. Aí sim, fez a diferença. Marcou 15 golos na primeira época e provocou um aumento de espetadores brutal no estádio, ávidos por descobrir quem era o primeiro estrangeiro a atuar na Holanda. Além disso, tinha um part-time como cantor num teatro local.

 

A carreira na Europa foi quase sempre como um globetrotter e só no Heracles teve verdadeiro sucesso. Mas, quando lhe pediram para abdicar do trabalho no teatro, sentiu que tinha de agarrar oportunidades que lhe valessem outro conforto financeiro. A primeira paragem em Cardiff, onde até marcou na estreia ao Liverpool.

 

De Gales foi para a Catalunha, contratado pelo Barcelona. Mas o limite de estrangeiros forçou o empréstimo ao Marselha, onde também não jogou, debilitado por problemas físicos. Na paragem seguinte, em Turim, assinou um contrato de 12 mil euros por ano e impressionou jornalistas com a camisola do Torino, muito por culpa dos cinco golos marcados ao Verona (5-2) logo no arranque.

 

«Se Pelé é o Rolls-Royce do futebol, Stanley Matthews o Mercedes e Di Stéfano o Cadillac, Mokone é claramente o Maseratti», escreveu Beppe Branco. Além disso, começou a ser comparado a Eusébio que, na altura, tinha acabado de chegar ao Benfica.

 

Ida para os Estados Unidos

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Steve Mokone ainda jogou no Valencia e na Austrália mas acabou a carreira com 30 anos. Depois, em 1964, decidiu ir viver para os Estados Unidos, concretizando aquilo que o pai sempre desejou para ele: ser alguém com estudos.

 

Estudou Psicologia na Universidade de Rutgers, em Nova Jérsia e, depois do doutoramento, tornou-se professor assistente na Universidade de Rochester, em Nova Iorque. Além disso, tornou-se um membro ativo de movimentos sociais, fosse contra o apartheid, contra a guerra do Vietname ou pelos direitos civis.

 

Um dos momentos mais mediáticos foi quando se envolveu numa campanha para que a África do Sul não organizasse os Jogos Olímpicos de 1968 e apareceu ao lado de figuras como Jackie Robinson – primeiro jogador negro da MLB – e Arthur Ashe – famoso tenista afro-americano que hoje dá nome ao estádio principal do US Open.

 

Doze anos na prisão

 

Tudo começou a mudar em 1977. Depois de se divorciar da primeira mulher e de ter ficado com a custódia da filha, Mokone passou por uma espiral de acontecimentos negativos que levaram a que cumprisse doze anos de prisão entre 1978 e 1990.

 

Primeiro, foi agredido por três indivíduos num parque de estacionamento. Pouco tempo depois, foi vítima de agressões da polícia na sequência de uma acusação de fraude com um cartão de crédito que foi retirada no dia seguinte. Um dia depois de ser libertado, foi acusado pelos ataques com ácido sulfúrico à mulher e à advogada de divórcio da mulher, que ficou com a cara desfigurada e cega de um olho.

 

Steve Mokone deu-se como culpado em tribunal mas garantiu sempre ser inocente. Depois de ser libertado, voltou à Psicologia, tornou-se embaixador do turismo da África do Sul em Nova Iorque e criou uma fundação para a educação através do desporto, que tinha o objetivo de ajudar sul-africanos talentosos a estudar nos Estados Unidos.

 

Inocente ou culpado?

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O jornalista Tom Egbers entrou em cena na década de 90. Motivado pelas histórias que o pai, adepto do Heracles, lhe contava sobre a estrela da década de 50, foi à procura de Steve Mokone para escrever um livro.

 

A receção na Holanda foi muito positiva. O livro deu origem a um filme e personalidades como Ruud Gullit e Guus Hiddink estiveram presentes na estreia. Além disso, Mokone viu uma rua e uma bancada do estádio do Heracles serem batizadas com o seu nome. Pela mesma altura, surgiu o lado negro: a história da prisão.

 

Egbers conseguiu escrever um livro inteiro sem nunca ter referido os doze anos que Steve Mokone tinha passado preso. E a razão para tal. O sul-africano nunca lhe tinha dito. Determinado em fazer justiça, regressou aos Estados Unidos para investigar o que se tinha passado, garantindo que escreveria novo livro.

 

Aos poucos, foi sentindo que Mokone tinha sido incriminado. «A razão pela qual tinha de ser preso foi porque tinha fugido da África do Sul por ser um membro proeminente do ANC (partido sul-africano), que nos anos 70 era considerado um movimento terrorista pelos Estados Unidos», disse.

 

O jornalista foi ainda mais longe: «Consegui ter acesso a uma sessão de hipnose feita pela CIA com a sua ex-mulher e é incrível ver a forma como as coisas foram manipuladas. Depois de 30 minutos, ela está convencida de que foi o Steve que a atacou, mas é incrivelmente manipulada pelos investigadores. Tudo foi feito para as pessoas testemunharem contra ele.»

 

O filho Ronnie Sello não tinha passaporte e vivia nos EUA. Disseram-lhe que seria deportado se não testemunhasse contra o pai. Durante o tempo que passou detido, várias foram as cartas que pediam que fosse libertado mais cedo. Uma delas foi endereçada por Desmond Tutu, prémio Nobel da Paz em 1984, com quem Mokone tinha estudado quando era novo.

 

A libertação só chegou em 1990, depois de garantir que nunca mais falaria sobre o assunto com alguém.

 

Nem a morte desfez a nuvem de suspeição

 

Steve Mokone entrou para o hall of fame do desporto da África do Sul em 2006 e morreu em 2015. As cerimónias na África do Sul foram várias e, a pedido do próprio, as cinzas do corpo foram espalhadas no estádio de Joanesburgo, onde se disputou a final do Mundial em 2010.

 

Também nessa altura entrou em ação a filha, Thandi Mokone-Chase. «Fiquei perturbada por ver o meu pai a ser tratado como um herói nacional devido à contradição. Esse herói não foi o homem com quem eu cresci. As memórias que tenho do meu pai são traumáticas», disse.

 

O relato de Thandi é perturbador. Conta como o pai lhe batia depois de a interrogar sobre o que tinha feito aos domingos com a mãe ou como a obrigava a comer a comida do lixo que estava na rua. «Um dia, foi tão mau que os vizinhos chamaram a polícia. Queria gritar e dizer à polícia que não estava tudo bem, mas sabia que se eles não acreditassem em mim, teria de ficar com ele e ele acabaria por me matar.»

 

A história continua. Thandi conta que Mokone torturava o cão e chegou a abusar da filha sexualmente. «Fingia estar a dormir mas ele agarrava-me pelas ancas e aproximava-se para se masturbar. Nunca disse a ninguém, só ao meu terapeuta e depois de o meu pai morrer. Só me senti livre depois de ele morrer», disse.

 

«Ainda estou zangada com as coisas que fez. Ele atacou o meu irmão, partiu-lhe os dentes com uma arma por ter testemunhado contra ele», acrescenta.

 

Thandi não põe em causa o papel que o pai desempenhou, só não aceita que seja tratado como um herói intocável.

 

«Foi um excelente jogador de futebol e ajudou a derrubar barreiras para outros sul-africanos negros jogarem no estrangeiro. Mas não era nenhum herói. Quero que as pessoas saibam que tem uma filha com quem não tinha uma boa relação. Ele não era um bom homem, ele não era um bom pai.»

 

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